quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A Bela sem a Fera

Escrito em 30/11/2013

Bela sem Fera?
Vaguei meus olhos pela janela mais uma vez. Outro suspiro. A rua estava movimentada, os carros buzinavam como loucos e a única luz que adentrava em meu cubículo, digo, apartamento, era a dos postes. Qual foi a graça mesmo de ter comprado aquele apartamento? No começo, eu o achava minúsculo, mal cabiam nossa cama de casal e o guarda-roupa para dois no quarto, mas hoje, tudo parece tão grande, tão vazio.
Quando você foi embora com apenas uma mala com suas roupas, eu me convenci que era melhor assim, nós brigávamos tanto que os vizinhos já chamaram até a polícia, três vezes, mas depois eu olhava para o, atualmente, meu apartamento e sentia que faltava algo. Fui à lojas, comprei tanta coisa pra preencher aquele vazio que mal cabia lá dentro.
Adotei até um gato. Você odeia gatos. E ainda assim, eu achava que faltava algo. Chamei meus amigos, fiz uma house party, e acabei ficando com aquele meu amigo que despertava tanto ciúme em você, quando acordei ao lado dele na manhã seguinte, foi como se um raio tivesse acertado minha cabeça. Era isso, faltava alguém ali do meu lado todos os dias pela manhã e na hora de dormir. Passei a convidar meu amigo para ir à minha casa cada vez mais frequentemente, até que, ao invés de amigo, passei a chama-lo de namorado.
Ele amava o Tito, meu gato, dava até certo ciúme de tanto carinho e mimos dedicados ao felino. O tempo passou e outro 02 de agosto chegou, no anterior você tinha ido embora, e nesse, eu comemorava oito meses de namoro, mas ainda achava que faltava algo naquele apartamento, embora o namorado estivesse praticamente morando lá.
Minha folga acabou sendo numa segunda, diferente de sempre, que era no domingo, e por coincidência, você apareceu por lá. Disse que apesar de tudo você ainda se preocupava muito comigo. Fiz café e servi com os biscoitos que, eu sabia, você ama, conversamos a tarde inteira, rimos, quase choramos relembrando o passado, você fez cara feia para o Tito e eu ri.
Parecia que tudo estava completo de novo. Mas você foi embora, e a sensação de que algo faltava voltou, porém, dessa vez não me preocupei em comprar algum outro artefato ou convidar mais alguém para minha casa. Dessa vez eu sabia que o que faltava ali era você. Terminei com o namorado naquela mesma noite.
E agora, aqui estou eu sentada na janela do (só) meu apartamento, tentando não olhar para dentro e encarar aquela sensação solitária e vazia. Tito pulou em meu colo e começou a ronronar como ele sempre faz quando nota que eu estou triste. Acariciei sua cabeça e voltei a observar a rua sem muita atenção. Eu me sentia presa num castelo, sem ter como sair, à espera do meu príncipe encantado.
Seria razoável citar a Rapunzel, mas eu sinceramente a acho uma sem sal, minha princesa favorita é a Bela. Talvez porque você costumasse dizer que éramos como eles, eu, a camponesa que não gostava de você, e você, a Fera que não sabia como conquistar a camponesa.
Depois do nosso primeiro beijo, nosso conto de fadas virou A Princesa e o Sapo, um anfíbio que com um pouco de carinho virou um príncipe, e a cada dia, eu te amava ainda mais, na verdade, ainda amo ainda mais. Só que agora, era só eu, a Bela no papel de Rapunzel, sem príncipe, sem relógio ou bule falante, com os cabelos cortados na altura dos ombros e sem Fera.
A campainha tocou e meu coração voltou a tocar junto, poderia ser meu príncipe? Abri a porta e dei de cara com minha Fera usando o terno social de todos os dias de trabalho, você devia ter ficado lá até tarde de novo, adorava fazer isso. Deixei a razão de lado e praticamente pulei em cima de você.
O seu abraço preencheu todo o vazio que eu sentia, e ali, numa noite de quarta, com a voz fraca e o coração explodindo, deixei pra trás toda minha autoconfiança e te pedi, gaguejando, não sei se por soluços ou nervosismo, pra voltar pra mim, me tirar da torre e me devolver meu castelo.
Com os olhos arregalados você disse que não sabia se era uma boa ideia. Eu te disse com convicção na voz, tudo o que realmente importava, eu te amo, e te perguntei se você me amava. Um sim doce e verdadeiro encheu-me de prazer, meus olhos transbordaram e um sorriso seu nasceu. Você limpou minhas lágrimas e me beijou.
E ali estávamos nós, mais uma vez, unidos, como se nunca você tivesse ido embora, a Bela e a Fera juntas por todos os contos de fadas que estavam por vir.


quarta-feira, 26 de julho de 2017

Caixa de lembranças

Eu ainda acho, por vezes, vestígios de ti nas minhas coisas. No meu guarda-roupa, nos meus e-mails, nos meus arquivos. Eu acho um pouco de ti nas minhas gírias e nos meus conhecimentos, na minha opinião sobre aquele assunto que antes eu nunca opinaria. Nunca me interessaria.
Eu acho um pouco de ti na tinta do meu cabelo, que tantas vezes foi você quem pintou, ou no shopping onde sempre almoçávamos. Nas minhas melhores lembranças você também está presente, nas nem tão boas, idem. No nome da minha cachorra, naquela pulseira guardada no fundo do baú, ou naquela música que passei a gostar enquanto você começou a enjoar.
Te vejo até nas minhas manias  mais bobas. Te vejo em vários lugares, mas não mais onde eu mais te encontrava. No meu coração. Não te vejo mais nos meus textos românticos ou nas minhas esperanças de um futuro a dois. Eu te vejo na construção da pessoa que sou hoje, no passado, e a isso eu sei ser grata (doeu, mas aprendi), mas no meu futuro não há a menor possibilidade. Hoje em dia, prefiro pensar no que ganhei ao longo desse tempo, do que me torturar com o que perdi. Com o que nunca me pertenceu.
E você está lá, na caixa de boas (e más) lembranças, possivelmente não esteja pra sempre, afinal, a vida é longa e eu apaixonada por sentimentos, mas certamente as coisas que aprendi e que evoluí, me acompanharão por muito tempo ainda.

domingo, 4 de junho de 2017

Brisa tropical

O céu aquela noite estava carregado. O vento batia com fúria contra seu rosto e leves respingos avisavam da chuva que cairia dali a pouco. O céu tempestuoso a lembrava de si mesma. Tantos sentimentos tentavam rasgar-lhe o peito ao mesmo tempo. Era intenso. Às vezes, tinha a impressão de que quem lhe tocasse seria tragado pela corrente elétrica. Às vezes, tinha a sensação de que seus trovões iriam deixar-lhe surda.

Insuportável? Ainda não era, mas poderia facilmente se tornar. Era um furacão de emoções que, por fora, transparecia a tranquilidade de uma brisa marinha. Era uma tempestade tropical que ainda não havia chegado à costa. Tumultuava o alto mar, onde ninguém poderia lhe achar. Transformava em caos aquela parte do céu que ninguém enxergava. Chorava sua chuva longe da praia. Vez ou outra, um marinheiro desavisado presenciava sua tempestade formada, ora uma pessoa que lhe ajudava a controlar os raios e a silenciar os trovões, ora gente que nem ao menos tentava entender seu caos interno. Que só queria procurar abrigo e fugir das nuvens negras.

O céu a sua frente começou a desabar sobre o mundo, os respingos continuavam tocando seu rosto, porém um pouco mais intensos. O barulho das gotas acertando as telhas dos telhados ao lado não a incomodavam. A chuva a fazia companhia. Chorava junto com ela. Esbravejava junto a ela. E ela, enquanto observava o céu em caos, tinha certeza de não estar sozinha com sua própria tempestade.

terça-feira, 16 de maio de 2017

História de papel

Cada história normalmente carrega uma série de perguntas consigo. Quem, como, quando, onde, por quê... O quem dessa história era a parte mais fácil, a maioria das pessoas que me conhecem responderiam por mim tranquilamente. Agora o resto das perguntas me pegavam um pouquinho mais. O quando e o onde eu saberia dizer, havia sido uma semana difícil,  com várias emoções ruins, e eis que me surge o seu convite. "Por que não?", pensei, já havia marcado com dois amigos praticamente no mesmo local. Onde aconteceu foi no mesmo canto onde semana passada eu vi alguém tratando um peixe gigante. Mas nem mesmo essa cena conseguiu me fazer esquecer aquela já tão bem gravada na memória. Aquela cena pra onde vez por outra eu volto para reviver. O porquê dessa história certamente será a mais difícil de responder. Não há motivo claro ou enumerado. Se houvesse, não poderia chamar-me de amante. A primeiro momento, a conversa foi legal e o beijo encaixou. Meu corpo falou por mim, desejando um contato carnal mais aprofundado. A segundo momento, a conversa foi mais legal ainda, a sintonia foi bacana. Os beijos melhoraram! O contato físico foi bom. Mas ouvir tua voz sussurrando, me chamando pra mais perto, foi encantador. Acordar e ter noção de que não queria que fosse, me fez um pouco temerosa. A terceiro momento, as conversas já entrosadas, a intimidade sendo criada bem diante dos meus olhos,  aquele sentimento nascendo bem onde eu podia sentir, o carinho, o amor... É, muita coisa aconteceu em pouco tempo. Não nego o quanto ainda me assusto, o quanto penso que parece uma fantasia que logo chegará a última página. Talvez chegue. Talvez esteja longe. Ou não. Eu continuo dia após dia virando uma nova página, algumas com muitas palavras, outras com poucos diálogos. Como toda história, essa tem reviravoltas e capítulos surpreendentes. Por ser protagonista, não sei se ainda estou no prólogo ou no meio do livro. Há exemplares que duram poucos meses e outros que duram a vida inteira, afinal. Eu só sei que quero ver por onde vai essa história, começada num bar, escrita em grande parte por mensagens e sentida com todo meu coração. Afinal, toda boa história carrega consigo seus questionamentos, e essa, ainda terá muitos outros para responder.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Lá no céu

Os dias não estavam sendo fáceis. E eu estava repetitiva. Saia do meu quarto e chegava no dos outros de mansinho. Quando me perguntavam o que era, não sabia o que dizer. Mesmo que soubesse, não diria. Como uma pessoa trancada diria o quanto estava precisando de um abraço? O quanto estava precisando que pessoas se fizessem presente em sua vida? Como diria pras pessoas presentes e ausentes o quanto suas mensagens eram importantes por me darem a falsa segurança de que não estava sozinha? No fim, estava. Acreditando ou não. Aceitando ou não. Até por meios online estava. Dei de ombros. Era uma pessoa solitária desde... Sempre. E sabia que não ia mudar. Por mais que sentisse a necessidade. Por mais que quisesse desesperadamente arranjar uma companhia pra minha solidão. Sempre seria. Mas nessa noite, um pequeno detalhe me fez sentir especial. Não partiu de ninguém. Não veio de nenhuma pessoa que tanto dizia me amar. Mas veio do céu. A lua cheia iluminando a noite me deu a sensação de ser abraçada. Aquele abraço que eu tanto almejava. Que eu tanto precisava. A lua linda lá no céu quase me prometeu que ia dar tudo certo. E eu quase acreditei. Voltei aqui para escrever essas palavras e para agradecer, para dizer que às vezes olhar ao redor e não procurar nada se torna mais eficaz do que viver procurando. Que o que importa, não é exatamente o acontecimento, mas como ele te atinge. A lua sempre brilhava no céu. Sempre diferente. Mas naquela noite solitária como tantas outras, foi ela que me acalmou o coração agitado. Foi ela quem brilhou e me fez lembrar que sempre volta. Que mesmo que ela suma em dias nublados, ela sempre volta a brilhar. E eu voltaria, ou começaria, a ultrapassar as nuvens de tempestade que me barravam o caminho. Que me impediam de brilhar. Eu voltaria a iluminar o caminho. E, quem sabe, esse caminho fosse o meu próprio.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Talvez

Feche os olhos e escute
Está ouvindo?
Não se preocupe
A melodia vai te encontrar
E quando você menos esperar
Vai estar sorrindo
Mesmo que venha a nem perceber
E quando isso acontecer
Você poderá me ver
Sorrindo pra você
Como se nada mais estivesse ali
Apenas a melodia
E eu
E você
Talvez eu tente tocar tua mão com a minha
E talvez você recue
Talvez tenha medo de me sentir assim, tão perto a ponto de te aquecer
Mas talvez, me veja sorrindo pra você
E isso baste pra te convencer
Você envolverá minha mão
E sorrirá, chegando um pouco mais perto de mim
E talvez, aquele som que nos abraça, me leve mais para perto de você
Ao ponto de eu não saber qual coração bate descompassado
Ao ponto de não saber onde começa e onde termina minha respiração
E talvez, no exato momento em que o refrão rasgar a madrugada
Eu encoste meus lábios nos teus
Porque, querido, você vai estar ali pra mim
E antes que possa perceber, estará sorrindo
E só existiremos nós ali
Eu
Você
E a canção
E quando você perceber, estará sorrindo
E eu estarei sorrindo pra você

quarta-feira, 29 de março de 2017

UTI

Bip. Bip. Bip.
Esse som agudo e irritante era a única coisa que eu conseguia ouvir. A UTI estava lotada naquela noite, tanto de visitantes quanto de pacientes. O cheiro da máscara que cobria metade do meu rosto me dava náuseas. Talvez o local também desse, mesmo sem a máscara. Senti o tecido fino da bata que me cobria e descobri ali na ponta um fio solto. Comecei a brincar com ele. Cheguei mais próxima ao leito cujo nome eu conhecia tão bem. Via tubos indo por vias que na minha cabeça não faziam sentido. Tinha tantos fios. Eu não sabia onde começavam e onde terminavam.
Ouvi ao longe uma voz fraca começar a cantar uma música que eu não reconhecia. Olhei em direção à voz e vi um senhor acariciando a cabeça de uma senhorinha enquanto cantarolava algo que, em minha mente, deveria ser especial para os dois. Já havia visto aquele senhor chorar abraçado à sua irmã após conversar com o médico. Não percebi quando meus olhos se encheram d’água, apenas quando gotas grossas rolaram de meus olhos escondendo-se dentro da máscara. Fitei novamente o homem de 71 anos deitado à minha frente. Ele parecia em paz a maior parte do tempo, mas de vez em quando fazia uma careta mexendo o tubo que adentrava sua boca e sumia garganta a dentro.
Suspirei pesadamente contendo mais lágrimas que teimavam em querer vir à tona. Fitei o homem em pé a minha frente, observando na mesma direção que eu olhava há segundos. Sabia que não deveria chorar na frente dele, sabia que ele sentia tanto quanto eu toda aquela situação. Olhei-o com ansiedade, desejando que ele me chamasse para ir embora. O senhor no outro leito ainda cantava. O mais próximo de mim me olhou e indicou a saída com a cabeça.
Na sala, despi-me do fardamento necessário para entrar no outro cômodo. Arranquei a máscara do rosto e joguei-a no lixo. O cheiro de hospital invadiu minhas narinas e quase me fez correr dali. Respirei fundo para manter a calma e lavei as mãos. Fomos em direção a saída. O barulho das máquinas havia ficado para trás, mas eu tinha certeza que elas ainda me assombrariam na hora de dormir.

Parecia um ciclo. Um pesadelo onde eu estava presa num círculo. Nunca achava a saída. Sempre de volta ao mesmo canto. No dia seguinte, abriria os olhos pela manhã, mas eu não sabia quando abriria os olhos e chegaria ao fim daquele sonho ruim. Eu só queria acordar.

terça-feira, 28 de março de 2017

Tom de voz



Fala comigo. Me deixa ouvir tua voz. Preocupada. Chateada. Animada. Me deixa almejar tua presença. Me deixa sentir tua falta a ponto de querer chorar. Me deixa sonhar em te encontrar. Fala comigo. Me conta do café frio que tomou a tarde. Me conta do ônibus lotado que te tirou a paciência. Me conta como foi no trabalho. Como chegou em casa. Me liga e diz que queria me ouvir falar. Eu odeio ligações, mas certamente dessa eu iria gostar. Talvez quisesse estender madrugada a dentro, caso não fosse incomodar. Me deixa querer adiar o tchau para o mais tardar possível. Me deixa imaginar as histórias que me conta enquanto sorrio por te ouvir falar. Me conta teus devaneios. Me conta o que dói dentro do teu peito. Me conta o que eu nunca perguntei. Porque, sabe, eu vou gostar de saber. Me conta sobre a série nova que assistiu. Ou sobre aquela antiga que tem lugar cativo na memória. Me conta sobre o que quiser falar ou fica em silêncio quando mais cômodo for. Mas deixa explicita tua presença. Deixa que eu decore o tom da tua voz. As mais leves alterações. Deixa que sonhe acordada imaginando quando será a próxima vez que chegará uma mensagem sua. Não precisa ser nada importante. Mas fala comigo. Deixa eu alimentar aqueles pequenos insetos que insistem em dançar em meu estômago. Os rodopios às vezes me sobem à cabeça. Me diz boa noite. Me diz até amanhã. E volta. Me deixa saber que, não importa a correria, no fim do dia, eu vou poder ouvir tua voz. No fim da semana, eu vou poder te sentir. Me deixa acreditar. Me deixa me apaixonar.

Contraste

Esticou a colcha da cama com um pequeno sorriso no rosto. Lembranças recentes não paravam de perturba-la. A quentura alheia. O contraste da pele, tão diferente da sua, enquanto seus dedos enlaçavam-se. Fechou os olhos por alguns segundos, deliciando-se, e terminou de fazer a cama.
Passou os dedos gentilmente pelo local antes ocupado por outra pessoa. Aquele sorriso lhe atingiu como uma flecha. Transmitia-lhe paz. Era doce, despreocupado. O olhar sereno e levemente vago ainda parecia fitar-lhe. E ela gostava daquilo. Começou a dobrar o lençol com delicadeza, não tinha pressa para terminar aquela tarefa, como se cada ato banal daqueles a fizesse reviver aqueles momentos. Retesou-se um pouco ao olhar para o cesto de roupa suja. Seria a primeira vez em meses que não jogaria os lençóis ali depois do que acontecera sobre eles.
Era a primeira vez em muito que ela não se sentia incomodada com o cheiro de outra pessoa misturando-se ao seu. Sorriu abertamente ao pensar nisso. Seu coração aqueceu-se um pouco com aquela sensação de que se libertara um pouco mais de antigos traumas. Tinha medo de parecer ridícula com esse pensamento, mas em seu íntimo orgulhava-se desse pequeno feito. Sentia-se um pouco mais crescida.
Terminou de dobrar os lençóis e suspirou. Aquele momento passou. A cama estava feita esperando-a aconchegar-se ali. Sozinha. Guardaria cada momento na sua mente como algo precioso. As palavras. Os gestos. Os momentos em que sua pele encontrava a outra. Talvez estivesse exagerando um pouco, mas não se importava. O que ela pensava só cabia a ela e ninguém mais. Aninhou-se na cama e prosseguiu seu dia como sempre. Como se tudo aquilo que se passava em sua mente fosse parte de uma história boa que guardaria para si por não querer mais ninguém metido.
Seus olhos estavam fixos na série que passava na televisão, mas sua mente a forçava a sorrir por motivos que nada tinham a ver com o humor americano apresentado. Pensava na corrente que quebrara ao manter os lençóis na cama sem se sentir incomodada com isso. Pensava em sorrisos que não saiam de seus lábios. Pensava na leveza que sentia.

Deixou sua mente descansar por alguns minutos enquanto tentava prestava atenção à TV. Seguiria em frente voltando às suas preocupações rotineiras. Mas as lembranças? Sempre poderia recorrer a elas quando precisasse.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Siga

Cresci. Já não me sinto tão próxima ao chão como antigamente. Estremeci. A queda parece maior agora. Andar parece duas vezes mais difícil. Parece que cada vez mais o solo desaparece sob meus passos. Não sei quando ele acaba. Tento permanecer estagnada. Sou empurrada. Sou forçada. Siga. E eu tento. Eu ando. Um passo. Depois o outro. Temerosa? Muito. Procuro placas indicando de onde estou próxima. Elas não falam minha língua. Nem eu a delas. Mais um desencontro nessa caminhada cega. Luzes em néon dizem para estacionar ali naquele canto aberto. As mesmas luzes mandam seguir em frente. Gostaria apenas de apaga-las. Achar uma pedra no caminho onde eu possa sentar. Descansar. Quem sabe, ligar o GPS. Procurar alguém que queira fugir da trilha. Mas não vejo interruptor. Apenas as luzes que me mandam seguir. Sigo.  Chove. Não tenho onde me proteger. Sinto a água gelada me percorrer. Ela alaga meu caminho e encharca minhas roupas. Mas leva algo consigo. Me deixa mais leve. A beira da estrada parece tão próxima que posso tocá-la com os pés. Pular para o stand by. Achar enfim onde sentar. Não sei se estou pronta para caminhar mais. Não sei se é certo parar. Não sei de onde surgem tantas pessoas e placas mandando seguir. Não sei de onde vem essa vontade avassaladora de parar. De dar um tempo. De processar. De tentar achar a vontade de seguir novamente. Mas e se cair? Quantos metros de decadência me aguardam? Quanta dor posso suportar? Fecho os olhos. É minha vez de pular. Caio. Mas não sei dizer onde vou aterrissar. Apenas me sinto cair. É hora de refletir. Parar de caminhar. Quem sabe se vou voltar?

domingo, 12 de março de 2017

As cores do ócio

Era sempre a última a sair da sala. O curso que fazia exigia tudo de si. Toda a sua determinação para não desistir e jogar tudo para o alto. Doce ironia que tenha passado tanto tempo procurando emprego para conseguir fazê-lo. Odiava a matéria vista, odiava os colegas, realmente bons naquilo que faziam ali, odiava o professor e o modo como ele falava dos programas, como se fossem tão simples que um chimpanzé poderia controla-los.
Realmente odiava todas as terças e quintas quando tinha que usar dez vezes mais força que o normal pra empurrar a porta de vidro da entrada daquela escola, tanto pelo peso quanto pela vontade de não entrar. O ambiente era bonito, elegante e muito organizado, a primeira vez que vira, sentiu-se deslumbrada. Começou tão empolgada aquele novo ciclo de sua vida que sequer cogitou a possibilidade de não estar certo.
Observou o último aluno ultrapassar o limite da porta e despedir-se do professor, que acenou com a cabeça para ela, como de costume e se retirou. Finalmente parou de fingir que guardava o material e desligava o computador e levantou-se da cadeira. Antigamente, era a primeira a correr para fora da sala sem ao menos despedir-se. Até aquela quinta-feira chuvosa. Fechou os olhos por dois segundos e permitiu-se viajar nas próprias lembranças.
Chovia muito, e ela estava sem guarda-chuva, não conhecia ninguém e ninguém parecia preocupar-se com sua ida para casa. Suspirou pesadamente e conformou-se em esperar um pouco, até amenizar a tempestade que caia lá fora, para poder ir até a parada esperar o ônibus. Buscou um banco vazio e afastado dos demais alunos que também esperavam, fossem seus pais ou qualquer outra coisa. Sentia-se como uma senhora naquele ambiente, a grande maioria dos colegas era menor de idade, estando entre 12 e 16 anos, enquanto ela aguardava os temidos 23 chegarem. Sentou-se no banco e fechou os olhos, exausta de mais até para pegar os fones de ouvido e colocar alguma música para tocar. Uns 15 minutos depois, estava quase cochilando quando sentiu a presença de alguém ao seu lado.  Olhou para a figura feminina com o semblante cansado, mas o converteu em admiração. Ela tinha traços delicados, nada deslumbrante, poderia até chamar de normal, na verdade, a pele clara e o cabelo curto, pintado num leve tom de roxo. Para muitos, uma adolescente normal, para ela, a garota mais linda que tivera o prazer de ver em semanas. Ela se resguardava sentada, com fones de ouvido e os olhos fechado, assim com a ruiva estivera momentos antes, o que a fez pensar há quanto tempo ela estava ali. Cantarolava uma música baixinho, alheia ao mundo ao seu redor. Tinha certeza de que era o som mais bonito que escutara até aquele momento, e em momento algum conseguiu desviar o olhar. A de cabelos roxos abriu os olhos e fitou-a, com um sorriso nascendo nos lábios.
-Olá-  murmurou baixinho, tirando a outra garota de seu transe.
A ruiva sentiu seu rosto assumir a cor de fogo de seus cabelos. Abriu um pequeno sorriso e fitou suas próprias mãos.
-Isis - disse a outra estendendo a mão.
A ruivinha olhou para a mão estendida, como se demorasse um pouco para compreender o que aquilo queria dizer.
-Hanna - sorriu ruborizada, segurando a mão de Isis.
A de madeixas roxas segurou sua mão dois segundos a mais do que a ruiva julgou necessário, e ela adorou aquilo.
-Sem guarda-chuva? - indagou casualmente.
Hanna assentiu ainda pensando no toque da mão da outra.
-Mas você tem um aí- observou apontado para o objeto pendurado na lateral de sua bolsa.
-Sim, mas sempre espero um pouco para ver se alguém precisa de carona pra casa, e pelo visto, você foi sorteada.
A ruiva sorriu abertamente enquanto agradecia aos céus por aquela chuva.”

Sorriu com a lembrança e abriu os olhos quando sentiu uma mão quente tocar a sua.
-Hanna?
-Isis - sorriu.
-Quer carona hoje? - indagou retoricamente, sabendo que a ruiva a esperava todas as terças e quintas, mesmo que tentasse disfarçar.
-Claro
-Então, tinha muitas dúvidas hoje?
Hanna sentiu o rosto esquentar, desde o dia em que se conheceram, pouco mais de um mês atrás, ela dava um jeito de esperar Isis sair da sala em que dava aula de canto. No final, ela não era uma adolescente normal, era professora de canto da escola e uma das melhores de que ouvira falar.
-Até que tinha. Não sei quando vou começar a entender esses programas complicados - respondeu sem graça.
Isis riu, em parte pela resposta, em parte porque sabia que era mentira.
Era uma mulher de 27 anos formada, viajada e vivida. Sabia bem que a mais nova a esperava e nutria certa admiração por si. Fosse pelo cabelo roxo ou pelo status de professora de canto. Não podia negar que esperava que esse interesse ultrapassasse a inocência e se enveredasse pelos caminhos da malícia. Mas ela era professora da escola, jamais correria o risco de "chegar" na ruiva e ela se assustar, pondo em risco seu emprego. Isis era muito bem resolvida em relação a sua vida. Sabia o que queria. E pra ela era o bastante.
-Não sei por que ainda insiste nesse curso, não consegue entender nada mesmo. Deveria procurar algo mais a sua cara.
Hanna a fitou por cinco segundos segurando a vontade de aponta-la como motivo para sua permanência. Se saísse da escola, não sabia quando e nem se a veria de novo.
-Não vou desistir tão fácil - soltou deixando Isis com a dúvida se havia ambiguidade naquela frase.
Saíram da escola e foram para o carro da mais velha. Hanna estava absorta em pensamentos, e a outra estranhava aquilo. Geralmente a ruiva falava pelas duas e por quem mais estivesse perto.
-Está tudo bem? - indagou com a voz melodiosa,  chamando a atenção da outra.
A mais nova sentiu um arrepio percorrer sua pele quando ouviu o tom da outra. Isis conseguiria convence-la a pular de um penhasco facilmente usando o tom certo de voz.
-Sim. Só estava pensando. Esse curso, como você mesma disse, não está me levando a lugar nenhum.
-Mude - respondeu enquanto ligava o carro e dava a ré.
-Eu gostaria de fazer aulas de português ou redação.
-Seria bem a sua cara. Inclua aulas de poesia a sua lista.
-Sabe que eu não sou boa nisso.
-Exatamente, você não é boa. Mas simplesmente porque não tenta. Se tentasse, tenho certeza se que poderíamos tirar coisas boas daí,  quem sabe até umas músicas novas para eu treinar meus alunos.
Hanna riu daquilo, era incrível como tudo saia mais fácil quando dito por Isis, ela parecia saber a resposta para tudo e isso a confortava. Ao mesmo tempo em que a professora a fazia suar frio e sentir borboletas no estômago, estar com ela lhe fornecia o maior sentimento de aconchego que havia experimentado na vida, como se ela fosse sua solução universal.
-Mas aí eu teria que mudar de escola. Parece brincadeira não ter aula de redação ou poesia lá. Eles devem oferecer aulas até de bruxaria, se alguém for procurar - revirou os olhos.
-Isso não deveria ser um problema. O que te prende lá?
-Onde mais vou arranjar uma professora de canto que me dê carona pra casa?
Isis sorriu. Aquela conversa podia tomar um rumo interessante.
-Com essa carinha linda de cachorro abandonado, tenho certeza de que logo alguém se prontificará - foi ousada.
Hanna sentiu o rosto pegar fogo. Isis parou em um sinal vermelho e olhou para a outra, se divertindo um pouco com o rubor de sua face geralmente pálida. A mais nova tentou rir de forma descontraída. Sabia que a professora não se importava com gênero para relacionar-se, mas não se atrevia a cogitar que ela tivesse interesse por si, não costumava contar com o otimismo.
-Mas quantos deles vão ter uma playlist tão boa quanto essa e tanto saco pra me escutar?
-Garanto que te escutar não é nenhum sacrifício. Quanto à playlist, leve a sua.
Hanna baixou os olhos, sabia que esse era o certo, mas esperava que a outra oferecesse um pouco de resistência quanto à ideia de ela ir para longe, sem a possibilidade de contato, já que nunca havia trocado número ou nada parecido com ela. Isis notou o semblante abatido da outra.
-Sabe Hanna, nem tudo precisa ser complicado e dramático. Deixe isso para suas criações literárias e viva a vida de modo mais simples. Não se force a fazer algo que não gosta por motivo nenhum.
Hanna ergueu os olhos e a fitou. Isis focava o olhar na rua enquanto dirigia,  e mesmo sob aquela luz alaranjada, ela ainda parecia o ser mais lindo do mundo.
-Eu gosto de drama.
-Eu sei - disse tocando discretamente a mão da ruiva, como se fosse sem querer - mas não precisa tanto. É seu futuro em jogo.
A ruiva sentiu seu coração bater tão forte que teve medo de a outra ouvir. Isis colocou a mão no volante outra vez.
-Eu entendo, mas sair de lá significa perder coisas que ainda não estou pronta - ao final da frase quase não havia voz.
-Certamente não tem a ver com o curso - Hanna negou com a cabeça - então faça isso ou essa pessoa permanecer em sua vida, já que parece tão importante - finalizou torcendo para que a outra ter entendido.
Se o que a prendia na escola fosse ela, a mais nova não precisaria se preocupar,  ela daria um jeito de não sair da vida da outra. Como amiga, ou o que ela quisesse.
O carro parou em frente à casa de Hanna e ela suspirou.  Não tinha tido tempo para bolar uma resposta. Virou-se para Isis para beijar-lhe a bochecha, como fazia desde a primeira vez em que ela lhe deu carona. Porém, a de cabelos roxos a encarava fixamente, mostrando que não havia espaço para bochechas naquele dia. Mesmo com o coração batendo forte, Hanna inclinou-se em direção a outra e selou seus lábios em um beijo nervoso.  Quando se afastou, Isis sorriu.
-Espero não te ver mais na escola. Mas aqui - entregou-lhe um papel dobrado - esse é meu número caso queira me ver fora de lá.
Hanna pegou o papel com um sorriso que ela jurava não caber no rosto. Selou novamente os lábios de Isis, dessa vez mais profundamente, e saiu do carro.
Observou-a se afastar e balbuciou.
-Sem dramas desnecessários, eu a quero na minha vida e não vou deixa-la sair – decretou para si mesma com um sorriso.

Entrou na casa já pensando nas outras escolas que iria procurar, mas com o sorriso ainda cravado nos lábios. Poderia ser o final da história, mas Hanna tinha certeza de que era apenas o começo. 

terça-feira, 7 de março de 2017

Entre penas e cetros

Jogou o peso de seu corpo pra cima e subiu na mesa. Agarrou-se com força às grades e fitou o horizonte. Tantos telhados bonitos pareciam existir, mas aquele, justamente aquele que ficava a sua frente, era velho, parecia gasto e as telhas estavam enegrecidas.

O céu estava limpo e vez ou outra um passarinho cortava sua visão, seguindo seu destino, e ela sentia tanta inveja. Ele sabia pra onde ia. Pra onde devia ir. Vislumbrou os cachos vermelhos caídos sobre sua face e pensou por dois segundos se eles poderiam ser trançados. Jogados daquela varanda para que o príncipe subisse e a salvasse. Que ele lhe desse um motivo pra ter passado tanto tempo esperando. Que ele lhe dissesse que ela tinha achado algo que acabaria com todas as suas dúvidas e incertezas. Riu amarga dos próprios pensamentos. Seu cabelo mal alcançava seus ombros, quem dirá cinco metros a baixo. E ela não era uma princesa esperando ser salva. 

Ela era uma jovem mulher/garota normal esperando algo de extraordinário acontecer. Mas ela ao menos saberia dizer o que era extraordinário. Encontrar alguém? Arranjar o emprego de seus sonhos? Com o que exatamente ela sonhava? Se um dia ganhasse asas, pra onde voaria? Pra onde essa pequena grande ave de penugens vermelhas e olhos escuros direcionaria seu bico? Que trilha sonora tocaria em sua mente enquanto ela tentaria se achar? E por que tinha tantas perguntas? Nem pra essa ela sabia a resposta.

Era uma jovem passarinho que sonhava com princesas infantis, ouvia suas trilhas sonoras adolescentes e não tinha a mínima ideia de como entrar em outra fase da vida. Mas ela sabia que queria ser seu próprio príncipe, ela queria se salvar da torre alta e da bruxa que a aprisionava. Essa bruxa talhada entre incertezas e sentimentos ruins. Ela queria ser seu próprio conto de fadas. Olhou da mesa para o chão, e lhe pareceu incrível como aquele menos de um metro parecia tão mais assustador do que a altura que separava a grade de onde seus pés poderiam tocar. Aquela pequena altura significava parar de devanear e continuar perdida. Mas já não estava?


Aquela princesa passarinho voltaria pro seu ninho aguardando o dia em que suas asas soubessem pra onde lhe guiar e o céu não parecesse tão assustador.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O que a cor diz

Mesmo com os óculos vencidos, mesmo com a luz baixa do raiar do dia, ela ainda podia ver aquilo. Aquelas cores que pareciam resplandecer mesmo no breu. As cores fortes e cítricas da caneca que ganhara no último aniversário de uma amiga querida. As cores de seus livros preferidos, o rosa bebê, o cinza opaco, o verde claro.
Às vezes gostava de andar devagar pelo quarto, ou mesmo pela rua, para observar melhor as cores. Não podia negar, elas lhe prendiam. Dois passos, dois tons, duas sensações. Nunca gostou de falar sobre elas com aquela amiga que via tantos sentimentos pintados em telas, gostava de dizer que não ligava pra isso. Mas, tinha de admitir, gostava mais do que poderia deixar explícito nos poucos comentários que fazia. Gostava do modo como a parede branca do banheiro tinha leves tons de vermelho por causa da tinta de seu cabelo. Gostava de como a cor da colcha da cama lhe deixava confortável estando ali no seu momento de paz. Gostava de como suas roupas, quase todas em tons escuros, transmitiam um pouco de si.
Gostava mais ainda, de quantas cores diferentes passeavam através de seus olhos quando ouvia aquela melodia com sabor de infância, e gostava de como aquela sensação de criança não havia sumido. Gostava de pensar que, quando devaneava, tudo tinha os tons do céu, como se ali passassem seus pensamentos mais secretos escritos com tinta negra.
Gostava de pensar que o mundo ficava um pouco mais colorido quando ela sorria sincera, ou quando retocava seu vermelho do cabelo. Gostava de pensar que quando ouvia uma música nova ou conhecia alguém legal, as cores brilhavam mais um pouquinho. Gostava de ver o mundo colorido, mesmo sabendo que às vezes o preto e o cinza predominavam. Ela também gostava disso, o tom mórbido parecia lhe acolher como um abraço quente.
Gostava de cores, em todos os tons, e sabia que elas significavam muito para si.

Adorava arco-íris, mas também sabia apreciar as chuva cinzenta que o antecedia.