quarta-feira, 29 de março de 2017

UTI

Bip. Bip. Bip.
Esse som agudo e irritante era a única coisa que eu conseguia ouvir. A UTI estava lotada naquela noite, tanto de visitantes quanto de pacientes. O cheiro da máscara que cobria metade do meu rosto me dava náuseas. Talvez o local também desse, mesmo sem a máscara. Senti o tecido fino da bata que me cobria e descobri ali na ponta um fio solto. Comecei a brincar com ele. Cheguei mais próxima ao leito cujo nome eu conhecia tão bem. Via tubos indo por vias que na minha cabeça não faziam sentido. Tinha tantos fios. Eu não sabia onde começavam e onde terminavam.
Ouvi ao longe uma voz fraca começar a cantar uma música que eu não reconhecia. Olhei em direção à voz e vi um senhor acariciando a cabeça de uma senhorinha enquanto cantarolava algo que, em minha mente, deveria ser especial para os dois. Já havia visto aquele senhor chorar abraçado à sua irmã após conversar com o médico. Não percebi quando meus olhos se encheram d’água, apenas quando gotas grossas rolaram de meus olhos escondendo-se dentro da máscara. Fitei novamente o homem de 71 anos deitado à minha frente. Ele parecia em paz a maior parte do tempo, mas de vez em quando fazia uma careta mexendo o tubo que adentrava sua boca e sumia garganta a dentro.
Suspirei pesadamente contendo mais lágrimas que teimavam em querer vir à tona. Fitei o homem em pé a minha frente, observando na mesma direção que eu olhava há segundos. Sabia que não deveria chorar na frente dele, sabia que ele sentia tanto quanto eu toda aquela situação. Olhei-o com ansiedade, desejando que ele me chamasse para ir embora. O senhor no outro leito ainda cantava. O mais próximo de mim me olhou e indicou a saída com a cabeça.
Na sala, despi-me do fardamento necessário para entrar no outro cômodo. Arranquei a máscara do rosto e joguei-a no lixo. O cheiro de hospital invadiu minhas narinas e quase me fez correr dali. Respirei fundo para manter a calma e lavei as mãos. Fomos em direção a saída. O barulho das máquinas havia ficado para trás, mas eu tinha certeza que elas ainda me assombrariam na hora de dormir.

Parecia um ciclo. Um pesadelo onde eu estava presa num círculo. Nunca achava a saída. Sempre de volta ao mesmo canto. No dia seguinte, abriria os olhos pela manhã, mas eu não sabia quando abriria os olhos e chegaria ao fim daquele sonho ruim. Eu só queria acordar.

terça-feira, 28 de março de 2017

Tom de voz



Fala comigo. Me deixa ouvir tua voz. Preocupada. Chateada. Animada. Me deixa almejar tua presença. Me deixa sentir tua falta a ponto de querer chorar. Me deixa sonhar em te encontrar. Fala comigo. Me conta do café frio que tomou a tarde. Me conta do ônibus lotado que te tirou a paciência. Me conta como foi no trabalho. Como chegou em casa. Me liga e diz que queria me ouvir falar. Eu odeio ligações, mas certamente dessa eu iria gostar. Talvez quisesse estender madrugada a dentro, caso não fosse incomodar. Me deixa querer adiar o tchau para o mais tardar possível. Me deixa imaginar as histórias que me conta enquanto sorrio por te ouvir falar. Me conta teus devaneios. Me conta o que dói dentro do teu peito. Me conta o que eu nunca perguntei. Porque, sabe, eu vou gostar de saber. Me conta sobre a série nova que assistiu. Ou sobre aquela antiga que tem lugar cativo na memória. Me conta sobre o que quiser falar ou fica em silêncio quando mais cômodo for. Mas deixa explicita tua presença. Deixa que eu decore o tom da tua voz. As mais leves alterações. Deixa que sonhe acordada imaginando quando será a próxima vez que chegará uma mensagem sua. Não precisa ser nada importante. Mas fala comigo. Deixa eu alimentar aqueles pequenos insetos que insistem em dançar em meu estômago. Os rodopios às vezes me sobem à cabeça. Me diz boa noite. Me diz até amanhã. E volta. Me deixa saber que, não importa a correria, no fim do dia, eu vou poder ouvir tua voz. No fim da semana, eu vou poder te sentir. Me deixa acreditar. Me deixa me apaixonar.

Contraste

Esticou a colcha da cama com um pequeno sorriso no rosto. Lembranças recentes não paravam de perturba-la. A quentura alheia. O contraste da pele, tão diferente da sua, enquanto seus dedos enlaçavam-se. Fechou os olhos por alguns segundos, deliciando-se, e terminou de fazer a cama.
Passou os dedos gentilmente pelo local antes ocupado por outra pessoa. Aquele sorriso lhe atingiu como uma flecha. Transmitia-lhe paz. Era doce, despreocupado. O olhar sereno e levemente vago ainda parecia fitar-lhe. E ela gostava daquilo. Começou a dobrar o lençol com delicadeza, não tinha pressa para terminar aquela tarefa, como se cada ato banal daqueles a fizesse reviver aqueles momentos. Retesou-se um pouco ao olhar para o cesto de roupa suja. Seria a primeira vez em meses que não jogaria os lençóis ali depois do que acontecera sobre eles.
Era a primeira vez em muito que ela não se sentia incomodada com o cheiro de outra pessoa misturando-se ao seu. Sorriu abertamente ao pensar nisso. Seu coração aqueceu-se um pouco com aquela sensação de que se libertara um pouco mais de antigos traumas. Tinha medo de parecer ridícula com esse pensamento, mas em seu íntimo orgulhava-se desse pequeno feito. Sentia-se um pouco mais crescida.
Terminou de dobrar os lençóis e suspirou. Aquele momento passou. A cama estava feita esperando-a aconchegar-se ali. Sozinha. Guardaria cada momento na sua mente como algo precioso. As palavras. Os gestos. Os momentos em que sua pele encontrava a outra. Talvez estivesse exagerando um pouco, mas não se importava. O que ela pensava só cabia a ela e ninguém mais. Aninhou-se na cama e prosseguiu seu dia como sempre. Como se tudo aquilo que se passava em sua mente fosse parte de uma história boa que guardaria para si por não querer mais ninguém metido.
Seus olhos estavam fixos na série que passava na televisão, mas sua mente a forçava a sorrir por motivos que nada tinham a ver com o humor americano apresentado. Pensava na corrente que quebrara ao manter os lençóis na cama sem se sentir incomodada com isso. Pensava em sorrisos que não saiam de seus lábios. Pensava na leveza que sentia.

Deixou sua mente descansar por alguns minutos enquanto tentava prestava atenção à TV. Seguiria em frente voltando às suas preocupações rotineiras. Mas as lembranças? Sempre poderia recorrer a elas quando precisasse.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Siga

Cresci. Já não me sinto tão próxima ao chão como antigamente. Estremeci. A queda parece maior agora. Andar parece duas vezes mais difícil. Parece que cada vez mais o solo desaparece sob meus passos. Não sei quando ele acaba. Tento permanecer estagnada. Sou empurrada. Sou forçada. Siga. E eu tento. Eu ando. Um passo. Depois o outro. Temerosa? Muito. Procuro placas indicando de onde estou próxima. Elas não falam minha língua. Nem eu a delas. Mais um desencontro nessa caminhada cega. Luzes em néon dizem para estacionar ali naquele canto aberto. As mesmas luzes mandam seguir em frente. Gostaria apenas de apaga-las. Achar uma pedra no caminho onde eu possa sentar. Descansar. Quem sabe, ligar o GPS. Procurar alguém que queira fugir da trilha. Mas não vejo interruptor. Apenas as luzes que me mandam seguir. Sigo.  Chove. Não tenho onde me proteger. Sinto a água gelada me percorrer. Ela alaga meu caminho e encharca minhas roupas. Mas leva algo consigo. Me deixa mais leve. A beira da estrada parece tão próxima que posso tocá-la com os pés. Pular para o stand by. Achar enfim onde sentar. Não sei se estou pronta para caminhar mais. Não sei se é certo parar. Não sei de onde surgem tantas pessoas e placas mandando seguir. Não sei de onde vem essa vontade avassaladora de parar. De dar um tempo. De processar. De tentar achar a vontade de seguir novamente. Mas e se cair? Quantos metros de decadência me aguardam? Quanta dor posso suportar? Fecho os olhos. É minha vez de pular. Caio. Mas não sei dizer onde vou aterrissar. Apenas me sinto cair. É hora de refletir. Parar de caminhar. Quem sabe se vou voltar?

domingo, 12 de março de 2017

As cores do ócio

Era sempre a última a sair da sala. O curso que fazia exigia tudo de si. Toda a sua determinação para não desistir e jogar tudo para o alto. Doce ironia que tenha passado tanto tempo procurando emprego para conseguir fazê-lo. Odiava a matéria vista, odiava os colegas, realmente bons naquilo que faziam ali, odiava o professor e o modo como ele falava dos programas, como se fossem tão simples que um chimpanzé poderia controla-los.
Realmente odiava todas as terças e quintas quando tinha que usar dez vezes mais força que o normal pra empurrar a porta de vidro da entrada daquela escola, tanto pelo peso quanto pela vontade de não entrar. O ambiente era bonito, elegante e muito organizado, a primeira vez que vira, sentiu-se deslumbrada. Começou tão empolgada aquele novo ciclo de sua vida que sequer cogitou a possibilidade de não estar certo.
Observou o último aluno ultrapassar o limite da porta e despedir-se do professor, que acenou com a cabeça para ela, como de costume e se retirou. Finalmente parou de fingir que guardava o material e desligava o computador e levantou-se da cadeira. Antigamente, era a primeira a correr para fora da sala sem ao menos despedir-se. Até aquela quinta-feira chuvosa. Fechou os olhos por dois segundos e permitiu-se viajar nas próprias lembranças.
Chovia muito, e ela estava sem guarda-chuva, não conhecia ninguém e ninguém parecia preocupar-se com sua ida para casa. Suspirou pesadamente e conformou-se em esperar um pouco, até amenizar a tempestade que caia lá fora, para poder ir até a parada esperar o ônibus. Buscou um banco vazio e afastado dos demais alunos que também esperavam, fossem seus pais ou qualquer outra coisa. Sentia-se como uma senhora naquele ambiente, a grande maioria dos colegas era menor de idade, estando entre 12 e 16 anos, enquanto ela aguardava os temidos 23 chegarem. Sentou-se no banco e fechou os olhos, exausta de mais até para pegar os fones de ouvido e colocar alguma música para tocar. Uns 15 minutos depois, estava quase cochilando quando sentiu a presença de alguém ao seu lado.  Olhou para a figura feminina com o semblante cansado, mas o converteu em admiração. Ela tinha traços delicados, nada deslumbrante, poderia até chamar de normal, na verdade, a pele clara e o cabelo curto, pintado num leve tom de roxo. Para muitos, uma adolescente normal, para ela, a garota mais linda que tivera o prazer de ver em semanas. Ela se resguardava sentada, com fones de ouvido e os olhos fechado, assim com a ruiva estivera momentos antes, o que a fez pensar há quanto tempo ela estava ali. Cantarolava uma música baixinho, alheia ao mundo ao seu redor. Tinha certeza de que era o som mais bonito que escutara até aquele momento, e em momento algum conseguiu desviar o olhar. A de cabelos roxos abriu os olhos e fitou-a, com um sorriso nascendo nos lábios.
-Olá-  murmurou baixinho, tirando a outra garota de seu transe.
A ruiva sentiu seu rosto assumir a cor de fogo de seus cabelos. Abriu um pequeno sorriso e fitou suas próprias mãos.
-Isis - disse a outra estendendo a mão.
A ruivinha olhou para a mão estendida, como se demorasse um pouco para compreender o que aquilo queria dizer.
-Hanna - sorriu ruborizada, segurando a mão de Isis.
A de madeixas roxas segurou sua mão dois segundos a mais do que a ruiva julgou necessário, e ela adorou aquilo.
-Sem guarda-chuva? - indagou casualmente.
Hanna assentiu ainda pensando no toque da mão da outra.
-Mas você tem um aí- observou apontado para o objeto pendurado na lateral de sua bolsa.
-Sim, mas sempre espero um pouco para ver se alguém precisa de carona pra casa, e pelo visto, você foi sorteada.
A ruiva sorriu abertamente enquanto agradecia aos céus por aquela chuva.”

Sorriu com a lembrança e abriu os olhos quando sentiu uma mão quente tocar a sua.
-Hanna?
-Isis - sorriu.
-Quer carona hoje? - indagou retoricamente, sabendo que a ruiva a esperava todas as terças e quintas, mesmo que tentasse disfarçar.
-Claro
-Então, tinha muitas dúvidas hoje?
Hanna sentiu o rosto esquentar, desde o dia em que se conheceram, pouco mais de um mês atrás, ela dava um jeito de esperar Isis sair da sala em que dava aula de canto. No final, ela não era uma adolescente normal, era professora de canto da escola e uma das melhores de que ouvira falar.
-Até que tinha. Não sei quando vou começar a entender esses programas complicados - respondeu sem graça.
Isis riu, em parte pela resposta, em parte porque sabia que era mentira.
Era uma mulher de 27 anos formada, viajada e vivida. Sabia bem que a mais nova a esperava e nutria certa admiração por si. Fosse pelo cabelo roxo ou pelo status de professora de canto. Não podia negar que esperava que esse interesse ultrapassasse a inocência e se enveredasse pelos caminhos da malícia. Mas ela era professora da escola, jamais correria o risco de "chegar" na ruiva e ela se assustar, pondo em risco seu emprego. Isis era muito bem resolvida em relação a sua vida. Sabia o que queria. E pra ela era o bastante.
-Não sei por que ainda insiste nesse curso, não consegue entender nada mesmo. Deveria procurar algo mais a sua cara.
Hanna a fitou por cinco segundos segurando a vontade de aponta-la como motivo para sua permanência. Se saísse da escola, não sabia quando e nem se a veria de novo.
-Não vou desistir tão fácil - soltou deixando Isis com a dúvida se havia ambiguidade naquela frase.
Saíram da escola e foram para o carro da mais velha. Hanna estava absorta em pensamentos, e a outra estranhava aquilo. Geralmente a ruiva falava pelas duas e por quem mais estivesse perto.
-Está tudo bem? - indagou com a voz melodiosa,  chamando a atenção da outra.
A mais nova sentiu um arrepio percorrer sua pele quando ouviu o tom da outra. Isis conseguiria convence-la a pular de um penhasco facilmente usando o tom certo de voz.
-Sim. Só estava pensando. Esse curso, como você mesma disse, não está me levando a lugar nenhum.
-Mude - respondeu enquanto ligava o carro e dava a ré.
-Eu gostaria de fazer aulas de português ou redação.
-Seria bem a sua cara. Inclua aulas de poesia a sua lista.
-Sabe que eu não sou boa nisso.
-Exatamente, você não é boa. Mas simplesmente porque não tenta. Se tentasse, tenho certeza se que poderíamos tirar coisas boas daí,  quem sabe até umas músicas novas para eu treinar meus alunos.
Hanna riu daquilo, era incrível como tudo saia mais fácil quando dito por Isis, ela parecia saber a resposta para tudo e isso a confortava. Ao mesmo tempo em que a professora a fazia suar frio e sentir borboletas no estômago, estar com ela lhe fornecia o maior sentimento de aconchego que havia experimentado na vida, como se ela fosse sua solução universal.
-Mas aí eu teria que mudar de escola. Parece brincadeira não ter aula de redação ou poesia lá. Eles devem oferecer aulas até de bruxaria, se alguém for procurar - revirou os olhos.
-Isso não deveria ser um problema. O que te prende lá?
-Onde mais vou arranjar uma professora de canto que me dê carona pra casa?
Isis sorriu. Aquela conversa podia tomar um rumo interessante.
-Com essa carinha linda de cachorro abandonado, tenho certeza de que logo alguém se prontificará - foi ousada.
Hanna sentiu o rosto pegar fogo. Isis parou em um sinal vermelho e olhou para a outra, se divertindo um pouco com o rubor de sua face geralmente pálida. A mais nova tentou rir de forma descontraída. Sabia que a professora não se importava com gênero para relacionar-se, mas não se atrevia a cogitar que ela tivesse interesse por si, não costumava contar com o otimismo.
-Mas quantos deles vão ter uma playlist tão boa quanto essa e tanto saco pra me escutar?
-Garanto que te escutar não é nenhum sacrifício. Quanto à playlist, leve a sua.
Hanna baixou os olhos, sabia que esse era o certo, mas esperava que a outra oferecesse um pouco de resistência quanto à ideia de ela ir para longe, sem a possibilidade de contato, já que nunca havia trocado número ou nada parecido com ela. Isis notou o semblante abatido da outra.
-Sabe Hanna, nem tudo precisa ser complicado e dramático. Deixe isso para suas criações literárias e viva a vida de modo mais simples. Não se force a fazer algo que não gosta por motivo nenhum.
Hanna ergueu os olhos e a fitou. Isis focava o olhar na rua enquanto dirigia,  e mesmo sob aquela luz alaranjada, ela ainda parecia o ser mais lindo do mundo.
-Eu gosto de drama.
-Eu sei - disse tocando discretamente a mão da ruiva, como se fosse sem querer - mas não precisa tanto. É seu futuro em jogo.
A ruiva sentiu seu coração bater tão forte que teve medo de a outra ouvir. Isis colocou a mão no volante outra vez.
-Eu entendo, mas sair de lá significa perder coisas que ainda não estou pronta - ao final da frase quase não havia voz.
-Certamente não tem a ver com o curso - Hanna negou com a cabeça - então faça isso ou essa pessoa permanecer em sua vida, já que parece tão importante - finalizou torcendo para que a outra ter entendido.
Se o que a prendia na escola fosse ela, a mais nova não precisaria se preocupar,  ela daria um jeito de não sair da vida da outra. Como amiga, ou o que ela quisesse.
O carro parou em frente à casa de Hanna e ela suspirou.  Não tinha tido tempo para bolar uma resposta. Virou-se para Isis para beijar-lhe a bochecha, como fazia desde a primeira vez em que ela lhe deu carona. Porém, a de cabelos roxos a encarava fixamente, mostrando que não havia espaço para bochechas naquele dia. Mesmo com o coração batendo forte, Hanna inclinou-se em direção a outra e selou seus lábios em um beijo nervoso.  Quando se afastou, Isis sorriu.
-Espero não te ver mais na escola. Mas aqui - entregou-lhe um papel dobrado - esse é meu número caso queira me ver fora de lá.
Hanna pegou o papel com um sorriso que ela jurava não caber no rosto. Selou novamente os lábios de Isis, dessa vez mais profundamente, e saiu do carro.
Observou-a se afastar e balbuciou.
-Sem dramas desnecessários, eu a quero na minha vida e não vou deixa-la sair – decretou para si mesma com um sorriso.

Entrou na casa já pensando nas outras escolas que iria procurar, mas com o sorriso ainda cravado nos lábios. Poderia ser o final da história, mas Hanna tinha certeza de que era apenas o começo. 

terça-feira, 7 de março de 2017

Entre penas e cetros

Jogou o peso de seu corpo pra cima e subiu na mesa. Agarrou-se com força às grades e fitou o horizonte. Tantos telhados bonitos pareciam existir, mas aquele, justamente aquele que ficava a sua frente, era velho, parecia gasto e as telhas estavam enegrecidas.

O céu estava limpo e vez ou outra um passarinho cortava sua visão, seguindo seu destino, e ela sentia tanta inveja. Ele sabia pra onde ia. Pra onde devia ir. Vislumbrou os cachos vermelhos caídos sobre sua face e pensou por dois segundos se eles poderiam ser trançados. Jogados daquela varanda para que o príncipe subisse e a salvasse. Que ele lhe desse um motivo pra ter passado tanto tempo esperando. Que ele lhe dissesse que ela tinha achado algo que acabaria com todas as suas dúvidas e incertezas. Riu amarga dos próprios pensamentos. Seu cabelo mal alcançava seus ombros, quem dirá cinco metros a baixo. E ela não era uma princesa esperando ser salva. 

Ela era uma jovem mulher/garota normal esperando algo de extraordinário acontecer. Mas ela ao menos saberia dizer o que era extraordinário. Encontrar alguém? Arranjar o emprego de seus sonhos? Com o que exatamente ela sonhava? Se um dia ganhasse asas, pra onde voaria? Pra onde essa pequena grande ave de penugens vermelhas e olhos escuros direcionaria seu bico? Que trilha sonora tocaria em sua mente enquanto ela tentaria se achar? E por que tinha tantas perguntas? Nem pra essa ela sabia a resposta.

Era uma jovem passarinho que sonhava com princesas infantis, ouvia suas trilhas sonoras adolescentes e não tinha a mínima ideia de como entrar em outra fase da vida. Mas ela sabia que queria ser seu próprio príncipe, ela queria se salvar da torre alta e da bruxa que a aprisionava. Essa bruxa talhada entre incertezas e sentimentos ruins. Ela queria ser seu próprio conto de fadas. Olhou da mesa para o chão, e lhe pareceu incrível como aquele menos de um metro parecia tão mais assustador do que a altura que separava a grade de onde seus pés poderiam tocar. Aquela pequena altura significava parar de devanear e continuar perdida. Mas já não estava?


Aquela princesa passarinho voltaria pro seu ninho aguardando o dia em que suas asas soubessem pra onde lhe guiar e o céu não parecesse tão assustador.