domingo, 16 de fevereiro de 2014

Na ponta de borracha

Poderia ter sido bom, ou até um pouco mais que isso (não já estava sendo?), mas você preferiu seguir sozinho, desfazer nossos caminhos, me tirar da sua rota. Engraçado, eu achei que tinha encontrado alguém que me ajudasse a caminhar por essas estradas, cujos caminhos só passo a conhecer depois de trilha-los. Sério, eu acreditei nisso.
Não, eu não creio que isso seja necessário, digo, alguém pra viver sua vida com você. Mas admito que a ideia me agrada. E passou a agradar mais ainda quando te conheci. Mas e daí? Essa estrada de dois, apenas um pode trilhar, e todos fazem questão de nos lembrar isso quando nos deixam. O problema maior são aqueles que nos fazem acreditar que nunca mais andaremos sozinhos. É chato. Acreditar, quero dizer. Eles vão. Por sua causa, por causa deles, por causa do destino ou por causa da falta de um.
Seja como for, sou obrigada a dizer, com a sinceridade que gosto de usar, que sempre gostei da solidão, ela me conforta, me deixa à vontade. Mas por você, eu fiz uma brecha, comecei a me convencer de que dois podia ser um bom número, uma boa nota, uma excelente junção de um mais um. Talvez seja. Depende de cada “um”, literalmente. Nesse caso, não casou. Ok, chega de combinar palavras. O que importa são os caminhos, não as rimas (mas de que seriam feitos os caminhos senão de versos e poemas?).
                Quantas vezes essa mesma linha foi escrita, e apagada em seguida? Posso dizer, com a certeza, de que muitas. Pena que isso não possa ser feito aqui, na real. Todas essas linhas pelas quais canetas já deslizaram, deixando sua marca, são duradouras, perecendo apenas com o passar do tempo (quando não passarão de nada). Sejam caminhos ou linhas, tudo até aqui já foi feito. O que não quer dizer que faça sentido. Como esse último parágrafo. Sentido, razão, lógica, ou nada. E daí? Quem liga?
                Eu. Eu ligo. Eu ligo pro parágrafo, pras linhas, pros caminhos, pras pessoas que se foram, pras promessas que insistiram em ficar. Eu ligo se faz sentido ou não. Eu ligo se estou sozinha ou acompanhada. Eu ligo pra trilha sonora da caminhada. Eu ligo pra isso (afinal, isso sou eu). Mas se for pra usar de sinceridade de novo, eu diria que a cada vez que uma promessa vem, e uma pessoa se vai, eu deixo de ligar um pouco. Que valem os caminhos? Não tem ninguém pra me guiar, ou me deixar guia-lo. Que valem as linhas, sem ninguém para lê-las? Que vale a solidão, se ela é tudo? Se não dá pra fazê-la diferente?

Passo um. Passo dois. Linha três. Canção quatro. Quinto capítulo. Sexto álbum. Sétima avenida. Oitava ruela. Nona sinfonia. Décimo livro. Autor: eu. Coautores: vagas abertas, algumas já preenchidas. Término previsto: até onde a tinta da caneta, a pilha do rádio e a sola das sandálias durarem.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Se sozinha não quer mais ficar

                -Garçom, por favor, me traz uma vodka com energético – pedi ao cara de gravata borboleta preta e camisa social branca que parou ao lado da cadeira em que eu estava e me ofereceu um sorriso.
                -Sim, senhorita. Deseja algo mais?
                Ele de volta, pensei, para em seguida negar com a cabeça. Onde aquele idiota está? Já devia ter chegado, quase uma hora de atraso só é justificado por um AVC ou situação de quase morte parecida. Mas no caso dele, podia ser só o cabelo, que não estava querendo ficar na posição topete perfeito. O garçom trouxe a bebida. Tomei um grande gole sem utilizar o canudo, na tentativa falha de me acalmar. Era meio desestimulante estar ali esperando meu amigo num bar lotado de pessoas sorridentes e sociáveis, enquanto eu era obrigada a olhar o celular de segundo em segundo esperando uma resposta para as minhas 20 mensagens anteriores, e evitar a carranca. “ONDE VOCÊ ESTÁ DEMÔNIO?”. Lá se foi a 21. Suspirei e bloqueei a tela do celular, mas deixei minha mão por cima dele, para o caso de vibrar e eu não ouvir.
                -Mas não fica assim anjinha, não precisa de tanta tristeza.
                Ouvi um fungado, e em seguida um choro baixo.
                -Mas... Ele... Eu não...
                -Eu sei que não, mas foi o certo, ok? Era melhor pra vocês dois.
                Engraçado, parece minha consciência falando pra mim. E aprumei na cadeira e me estiquei um pouco para o lado da mesa onde as meninas estavam.
                -Mas por que o certo tem que doer tanto?
                -Amiga, você só ia se machucar se levasse adiante. Ele não disse que precisava de tempo? Você deu isso a ele, foi altruísta sim, mas pelo menos você respeitou a vontade de uma pessoa que ama.
                A garota pareceu intensificar o choro. A verdade parecia machuca-la muito. Isso às vezes me levava a me perguntar porque as pessoas não podem pelo menos se iludir um pouco com mentiras e se permitirem serem felizes. A resposta me acertava como um tapa segundos depois que eu me indagava.
                -Mas é injusto! – ela estava inconformada.
                Não vi a reação da amiga dela, mas tive a impressão de que ela a abraçou, pois o som de choro ficou meio abafado. Cheguei a conclusão de que meus sentidos se apuravam quando eu estava curiosa. Apertei o botão do celular, ainda não tinha nenhuma resposta. Voltei a prestar atenção ao meu redor, esperando mais alguma coisa daquele diálogo, o que não tardou muito.
                -Sabe, dói tanto ver seu nome no bate-papo do Facebook e saber que ele nem se interessa em falar comigo, dói tanto saber que eu estou aqui chorando por ele, e tem a grande probabilidade de ele estar com os amigos dele, nem lembrando que eu existo. Machuca tanto me fazer de orgulhosa e não mandar nem um oi, me destrói pensar que eu devia ter guardado todos aqueles eu te amo, que eu devia ter guardado meu coração melhor. Quando eu vou poder me jogar de cabeça, sem me preocupar em quebrar a cara?
                Nossa, esse discurso me pegou desprevenida. Eu sabia muito bem como ela se sentia. Aliás, acho que todo mundo, homem e mulher, identifica alguma parte de sua vida com as palavras daquela garota cujo rosto, corpo ou cabelo eu apenas imaginava como eram.
                -Eu te entendo. Mas sabe que não foi em vão.
                -Sei! – ela quase gritou. – Eu sei! Por isso mesmo dói tanto. Se tivesse sido, se eu realmente acreditasse que ele nunca sentiu nada por mim seria mais fácil. Mas aí que fica o problema, eu acredito que ele realmente gostava de mim. O que eu fiz de errado? – ela finalizou, mal conseguindo terminar a frase por conta do choro que apertou.
                Demorei alguns segundos pra notar que meu celular vibrava em baixo da minha mão. Atendi.
                -Amor meu, de toda a minha vida! Tá segurando algo pontiagudo?
                -Não, Leo, ainda não.
                Ufa, que bom, porque eu já estou chegando. Mantenha-se longe das facas e garrafa, sei que sua mira não é muito boa, mas tenho medo de me acertar quando estiver passando pela porta.
                E desligou. Atrevido! Se atrasa uma hora e ainda fresca com minha cara. Eu devia mesmo pedir uma faca. Mas deixei o telefonema de lado e tentei voltar a prestar atenção à conversa.
                -Não adianta. Eu sei que posso chorar um rio amazonas completo, ele não vai voltar pra mim – aquela última frase saiu com sofreguidão, como se ela tivesse medo de dizer e ser totalmente verdade.
                Mas ao que parece, era.
                -Amiga, você é linda, jovem, tem o coração grande e o sorriso fácil, não deixa ninguém estragar isso. Não deixa que uma pessoa que cometeu a burrice de ir embora da sua vida faça de você refém de seus próprios sentimentos. Não foi a primeira, e nem será a última vez. Mas uma hora, vai dar certo.
                Frases prontas. Nossa, que original! Quando algum amigo meu resolve me consolar bancando o Facebook, só consegue uma portada na cara, mas a garota parece que se convenceu de que era melhor tentar absorver aquelas palavras, pois ficou em silêncio.
                -Não deixe de ouvir músicas bonitas, românticas, ou ler livros melosos, não deixe que alguém te estrague, não deixe que te esfriem. Seja quem for. Eu não o conheci, mas tenho certeza de que em nenhum momento a intenção dele foi te machucar. Tenho certeza de que foi só... Azar, uma obra do destino. Talvez vocês fossem um pouco imaturos pro que estavam sentindo. Talvez ainda não fosse a hora.
                Ai! Não é só de frases feitas que se fez aquela garota. Parece que ela andou lendo um pouco mais do que as postagens dos poetas do Facebook. Senti até um pouquinho de orgulho alheio. Tenho a impressão de que a outra menina se jogou nos braços da amiga. Pelo menos era o que eu faria.
                -Vamos pra casa? Te faço um balde de pipoca e uma panela de brigadeiro.
                A outra gemeu animada e as ouvi chamando o garçom. Quando pagaram a conta, passaram ao meu lado, assim pude dar forma às duas pessoas que conversaram quase comigo durante aquela noite. Elas eram muito parecidas comigo, não fisicamente, mas cada uma carregava consigo um pouco de mulher, e um pouco de menina. Cada uma tinha marcas da vida no sorriso de criança. Cada uma tinha um pouco de fel no doce dos olhos.
                -Desculpa, amoooooora da minha vida! Me atrasei um pouquinho, mas vou te contar, acordei em um badhair day que só Afrodite na causa – gritou Leo, chegando coma  sutileza de um elefante bailarino.
                -Tudo bem – respondi ainda pensando nas meninas que saíram há pouco do bar.
                -Ué, você ainda não gritou e não tentou me matar com a toalha da mesa. O que aconteceu?
                -Acho que... Descobri que não estou sozinha.

                Ele me encarou com as sobrancelhas arqueadas, mas eu apenas sorri. Por um momento, eu tinha esquecido disso. Que toda aquela dor me fazia humana, e se me fazia humana, me fazia igual a muitas outras pessoas. Pessoas felizes, sorridentes, que não se deixavam vencer pelas feridas, ou pessoas que simplesmente não aguentavam a dor, que pereciam diante dos olhos de quem mais se preocupava com elas. Eu tinha que escolher qual dessas eu ia ser. E eu não ia me render a um sentimento, tendo tantos outros borbulhando dentro de mim. E o mais importante, eu não estaria sozinha, com ou sem ele, com o coração inteiro ou estilhaçado. Eu sempre teria alguém ao meu lado.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Vago


Olhei pra trás, em busca daquilo que senti falta. Mas o que era? Eu tinha sentido falta de algo, mas sinceramente não saberia dizer o que era. Sonhos... Olhei para frente em busca de respostas, eu não via nada. Nem saberia dizer o que eu esperava ver. Olhei para os lados, procurando alguém que me respondesse, que me tirasse dúvidas. Não tinha ninguém, mas não importava, eu não sabia mesmo quem queria que estivesse ali. Ergui a cabeça, fitando o céu. Estrelas? Lua? Sol? O que era pra ter lá em cima? Desejei que o céu fosse um grande quadro em branco, esperando o pincel de um artista enquanto conservava-se vazio, pois era tudo que eu via.

Olhei para baixo. Terra... Asfalto, estrada, cimento, grama, mato... O que era aquilo? Semicerrei os olhos tentando distinguir a imagem. Poderia ser tudo, e ao mesmo tempo poderia ser nada. Podia ser o céu, ou o inferno, podia ser os Campos Elíseos, o Tártaro, o Olimpo, o quintal da casa em que cresci, a varanda da casa em que vou viver, a terra do cemitério onde me transformaria em pó, e podia não ser nada disso.

Olhei pra dentro, numa última esperança de ver algo. Mas tudo parecia tão... Vago. Gritei, mas aquele som ecoou, como acontece em um quarto vazio ou à beira de um precipício. Eu não tinha ideia de qual dos dois estava à minha frente. Um passo adiante, mas o que sustentava aquele passo? Olhei pra baixo, lá no fundo. Tinha uma coisa brilhando fracamente, como se a pilha estivesse fraca. O que era aquilo?

Segui pela trilha de nada até chegar perto. Notei que ele pulsava com um esforço imenso, não parecia que ia durar mais que alguns movimentos. Não, talvez nem o próximo suportasse. Sua aparência era tão cansada, que me surpreendi que ainda lutasse por aquela luz fraca, aqueles movimentos quase extintos. Olhei ao redor, tudo era escuro. A luz vinda daquilo a minha frente não parecia capaz de iluminar nem meus próprios pés. Aproximei meu rosto da luz rosada, de pertinho, dava pra notar meu equívoco, era vermelho. Tanto a luz, quanto o que a emitia. Ergui a mão e o toquei, em um pulo pareceu-me que as pulsações haviam aumentado um pouco, a luz agora me permitia ver meus joelhos.

Segurei-o entre minhas duas mãos. A cor se avivou, a luz agora me cegava. Fechei os olhos com força, deslumbrada. O que era aquilo que eu via de olhos fechados? Um rosto? Quem era? Aliás, quem eram? Esperem! Não se vão! Fechei minhas mãos entorno daquilo com mais força, sentindo-o encher-se de vida, pulsar forte, colorir o ambiente ao meu redor. Abri os olhos. Nada mais prendia aquilo que eu segurava. Ao meu redor, os rostos que vi de olhos fechados sorriam pra mim. Eu sorria? Olhei para minhas mãos. Aquilo parecia... Um coração? Como eu não havia identificado antes? E de quem... Era meu? Mas estava quase... Morto. Eu estava quase morta. Os rostos! Eu os reconhecia! Eles... Me lembravam... Cenas? Um filme? Mas o quê? O que era aquilo? Aquela garotinha parecia comigo. Era... Eu. Era minha vida que passava naquelas paredes. Era o fim? Eu estava morrendo? Olhei para o órgão em minhas mãos, ele pulsava com força, não parecia perto do fim.

Estalou. Entendi. Eu estava quase morta. Mas não estava. Não era minha hora. Eu não podia me render. Recoloquei o coração em seu lugar e voltei pela trilha que parecia feita de lembranças. Corri até o lado de fora, esperando não ser tarde. Emergi com força, caindo deitada. Abri os olhos. Eram estrelas! Céu negro. Apalpei o chão ao meu redor. Grama. Pelo toque ainda molhada de orvalho. Passeei minhas mãos pelo meus corpo, parando no peito. Eu sentia o pulsar forte, acelerado. Olhei para os lados, não tinha ninguém, mas eu sabia quem queria que estivesse ali. Era isso! Olhei pra trás. Sorri e voltei a fitar o céu. Eu sentia falta de mim. Eu sentia falta de me sentir viva.