domingo, 12 de março de 2017

As cores do ócio

Era sempre a última a sair da sala. O curso que fazia exigia tudo de si. Toda a sua determinação para não desistir e jogar tudo para o alto. Doce ironia que tenha passado tanto tempo procurando emprego para conseguir fazê-lo. Odiava a matéria vista, odiava os colegas, realmente bons naquilo que faziam ali, odiava o professor e o modo como ele falava dos programas, como se fossem tão simples que um chimpanzé poderia controla-los.
Realmente odiava todas as terças e quintas quando tinha que usar dez vezes mais força que o normal pra empurrar a porta de vidro da entrada daquela escola, tanto pelo peso quanto pela vontade de não entrar. O ambiente era bonito, elegante e muito organizado, a primeira vez que vira, sentiu-se deslumbrada. Começou tão empolgada aquele novo ciclo de sua vida que sequer cogitou a possibilidade de não estar certo.
Observou o último aluno ultrapassar o limite da porta e despedir-se do professor, que acenou com a cabeça para ela, como de costume e se retirou. Finalmente parou de fingir que guardava o material e desligava o computador e levantou-se da cadeira. Antigamente, era a primeira a correr para fora da sala sem ao menos despedir-se. Até aquela quinta-feira chuvosa. Fechou os olhos por dois segundos e permitiu-se viajar nas próprias lembranças.
Chovia muito, e ela estava sem guarda-chuva, não conhecia ninguém e ninguém parecia preocupar-se com sua ida para casa. Suspirou pesadamente e conformou-se em esperar um pouco, até amenizar a tempestade que caia lá fora, para poder ir até a parada esperar o ônibus. Buscou um banco vazio e afastado dos demais alunos que também esperavam, fossem seus pais ou qualquer outra coisa. Sentia-se como uma senhora naquele ambiente, a grande maioria dos colegas era menor de idade, estando entre 12 e 16 anos, enquanto ela aguardava os temidos 23 chegarem. Sentou-se no banco e fechou os olhos, exausta de mais até para pegar os fones de ouvido e colocar alguma música para tocar. Uns 15 minutos depois, estava quase cochilando quando sentiu a presença de alguém ao seu lado.  Olhou para a figura feminina com o semblante cansado, mas o converteu em admiração. Ela tinha traços delicados, nada deslumbrante, poderia até chamar de normal, na verdade, a pele clara e o cabelo curto, pintado num leve tom de roxo. Para muitos, uma adolescente normal, para ela, a garota mais linda que tivera o prazer de ver em semanas. Ela se resguardava sentada, com fones de ouvido e os olhos fechado, assim com a ruiva estivera momentos antes, o que a fez pensar há quanto tempo ela estava ali. Cantarolava uma música baixinho, alheia ao mundo ao seu redor. Tinha certeza de que era o som mais bonito que escutara até aquele momento, e em momento algum conseguiu desviar o olhar. A de cabelos roxos abriu os olhos e fitou-a, com um sorriso nascendo nos lábios.
-Olá-  murmurou baixinho, tirando a outra garota de seu transe.
A ruiva sentiu seu rosto assumir a cor de fogo de seus cabelos. Abriu um pequeno sorriso e fitou suas próprias mãos.
-Isis - disse a outra estendendo a mão.
A ruivinha olhou para a mão estendida, como se demorasse um pouco para compreender o que aquilo queria dizer.
-Hanna - sorriu ruborizada, segurando a mão de Isis.
A de madeixas roxas segurou sua mão dois segundos a mais do que a ruiva julgou necessário, e ela adorou aquilo.
-Sem guarda-chuva? - indagou casualmente.
Hanna assentiu ainda pensando no toque da mão da outra.
-Mas você tem um aí- observou apontado para o objeto pendurado na lateral de sua bolsa.
-Sim, mas sempre espero um pouco para ver se alguém precisa de carona pra casa, e pelo visto, você foi sorteada.
A ruiva sorriu abertamente enquanto agradecia aos céus por aquela chuva.”

Sorriu com a lembrança e abriu os olhos quando sentiu uma mão quente tocar a sua.
-Hanna?
-Isis - sorriu.
-Quer carona hoje? - indagou retoricamente, sabendo que a ruiva a esperava todas as terças e quintas, mesmo que tentasse disfarçar.
-Claro
-Então, tinha muitas dúvidas hoje?
Hanna sentiu o rosto esquentar, desde o dia em que se conheceram, pouco mais de um mês atrás, ela dava um jeito de esperar Isis sair da sala em que dava aula de canto. No final, ela não era uma adolescente normal, era professora de canto da escola e uma das melhores de que ouvira falar.
-Até que tinha. Não sei quando vou começar a entender esses programas complicados - respondeu sem graça.
Isis riu, em parte pela resposta, em parte porque sabia que era mentira.
Era uma mulher de 27 anos formada, viajada e vivida. Sabia bem que a mais nova a esperava e nutria certa admiração por si. Fosse pelo cabelo roxo ou pelo status de professora de canto. Não podia negar que esperava que esse interesse ultrapassasse a inocência e se enveredasse pelos caminhos da malícia. Mas ela era professora da escola, jamais correria o risco de "chegar" na ruiva e ela se assustar, pondo em risco seu emprego. Isis era muito bem resolvida em relação a sua vida. Sabia o que queria. E pra ela era o bastante.
-Não sei por que ainda insiste nesse curso, não consegue entender nada mesmo. Deveria procurar algo mais a sua cara.
Hanna a fitou por cinco segundos segurando a vontade de aponta-la como motivo para sua permanência. Se saísse da escola, não sabia quando e nem se a veria de novo.
-Não vou desistir tão fácil - soltou deixando Isis com a dúvida se havia ambiguidade naquela frase.
Saíram da escola e foram para o carro da mais velha. Hanna estava absorta em pensamentos, e a outra estranhava aquilo. Geralmente a ruiva falava pelas duas e por quem mais estivesse perto.
-Está tudo bem? - indagou com a voz melodiosa,  chamando a atenção da outra.
A mais nova sentiu um arrepio percorrer sua pele quando ouviu o tom da outra. Isis conseguiria convence-la a pular de um penhasco facilmente usando o tom certo de voz.
-Sim. Só estava pensando. Esse curso, como você mesma disse, não está me levando a lugar nenhum.
-Mude - respondeu enquanto ligava o carro e dava a ré.
-Eu gostaria de fazer aulas de português ou redação.
-Seria bem a sua cara. Inclua aulas de poesia a sua lista.
-Sabe que eu não sou boa nisso.
-Exatamente, você não é boa. Mas simplesmente porque não tenta. Se tentasse, tenho certeza se que poderíamos tirar coisas boas daí,  quem sabe até umas músicas novas para eu treinar meus alunos.
Hanna riu daquilo, era incrível como tudo saia mais fácil quando dito por Isis, ela parecia saber a resposta para tudo e isso a confortava. Ao mesmo tempo em que a professora a fazia suar frio e sentir borboletas no estômago, estar com ela lhe fornecia o maior sentimento de aconchego que havia experimentado na vida, como se ela fosse sua solução universal.
-Mas aí eu teria que mudar de escola. Parece brincadeira não ter aula de redação ou poesia lá. Eles devem oferecer aulas até de bruxaria, se alguém for procurar - revirou os olhos.
-Isso não deveria ser um problema. O que te prende lá?
-Onde mais vou arranjar uma professora de canto que me dê carona pra casa?
Isis sorriu. Aquela conversa podia tomar um rumo interessante.
-Com essa carinha linda de cachorro abandonado, tenho certeza de que logo alguém se prontificará - foi ousada.
Hanna sentiu o rosto pegar fogo. Isis parou em um sinal vermelho e olhou para a outra, se divertindo um pouco com o rubor de sua face geralmente pálida. A mais nova tentou rir de forma descontraída. Sabia que a professora não se importava com gênero para relacionar-se, mas não se atrevia a cogitar que ela tivesse interesse por si, não costumava contar com o otimismo.
-Mas quantos deles vão ter uma playlist tão boa quanto essa e tanto saco pra me escutar?
-Garanto que te escutar não é nenhum sacrifício. Quanto à playlist, leve a sua.
Hanna baixou os olhos, sabia que esse era o certo, mas esperava que a outra oferecesse um pouco de resistência quanto à ideia de ela ir para longe, sem a possibilidade de contato, já que nunca havia trocado número ou nada parecido com ela. Isis notou o semblante abatido da outra.
-Sabe Hanna, nem tudo precisa ser complicado e dramático. Deixe isso para suas criações literárias e viva a vida de modo mais simples. Não se force a fazer algo que não gosta por motivo nenhum.
Hanna ergueu os olhos e a fitou. Isis focava o olhar na rua enquanto dirigia,  e mesmo sob aquela luz alaranjada, ela ainda parecia o ser mais lindo do mundo.
-Eu gosto de drama.
-Eu sei - disse tocando discretamente a mão da ruiva, como se fosse sem querer - mas não precisa tanto. É seu futuro em jogo.
A ruiva sentiu seu coração bater tão forte que teve medo de a outra ouvir. Isis colocou a mão no volante outra vez.
-Eu entendo, mas sair de lá significa perder coisas que ainda não estou pronta - ao final da frase quase não havia voz.
-Certamente não tem a ver com o curso - Hanna negou com a cabeça - então faça isso ou essa pessoa permanecer em sua vida, já que parece tão importante - finalizou torcendo para que a outra ter entendido.
Se o que a prendia na escola fosse ela, a mais nova não precisaria se preocupar,  ela daria um jeito de não sair da vida da outra. Como amiga, ou o que ela quisesse.
O carro parou em frente à casa de Hanna e ela suspirou.  Não tinha tido tempo para bolar uma resposta. Virou-se para Isis para beijar-lhe a bochecha, como fazia desde a primeira vez em que ela lhe deu carona. Porém, a de cabelos roxos a encarava fixamente, mostrando que não havia espaço para bochechas naquele dia. Mesmo com o coração batendo forte, Hanna inclinou-se em direção a outra e selou seus lábios em um beijo nervoso.  Quando se afastou, Isis sorriu.
-Espero não te ver mais na escola. Mas aqui - entregou-lhe um papel dobrado - esse é meu número caso queira me ver fora de lá.
Hanna pegou o papel com um sorriso que ela jurava não caber no rosto. Selou novamente os lábios de Isis, dessa vez mais profundamente, e saiu do carro.
Observou-a se afastar e balbuciou.
-Sem dramas desnecessários, eu a quero na minha vida e não vou deixa-la sair – decretou para si mesma com um sorriso.

Entrou na casa já pensando nas outras escolas que iria procurar, mas com o sorriso ainda cravado nos lábios. Poderia ser o final da história, mas Hanna tinha certeza de que era apenas o começo. 

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